Os Curiosos

Um curioso é um navegador que, mesmo após passada a euforia do descobrimento, revisita a terra anos mais tarde no intuito de se redescobrir.

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Toda história tem seu começo. Mesmo com toda esta besta discussão sobre o início da vida, se é que ela começa na fecundação ou não, se foi obra do acaso ou um plano arquitetônico milimetricamente planejado, o importante é que histórias não são como a vida, apesar do contrário muitas vezes ser perceptível. Histórias estão além da vida, vão além da vida, e duram gerações e gerações intactas e intrigantes. Muitas delas são trabalhos árduos de uma vida inteira levada à sua disposição. Por isso mesmo é que histórias não têm nada a ver com a vida. A vida é complexa, discutível, geradora de matérias e mais matérias à seu respeito. As histórias e a literatura também o são, mas a literatura é humana, enquanto a vida é sobre-humana. A literatura, enfim, só existe por essa magnífica característica da vida. E é com essa humilde análise sobre a vida e a literatura que começamos a história de Ana: com a morte.

Trata-se da memória mais distante que ela tem em mente. Daquelas que de tão incertas não se distinguem claramente dos sonhos. Tal lembrança é de quando tinha por volta de quatro ou cinco anos. O sol era como um adolescente passando pela fase de timidez e com sua voz baixinha, quase um sussurro acabrunhado, dizia, “adeus!”

Ana brincava no jardim de casa, sozinha. A grama alta de semanas sem poda comichava o pé descalço daquela menina de cabelos curtos e vestidinho batido. Seus olhos grandes cor de mel pareciam prender-se a cada coisa diferente que cruzasse seu caminho, analíticos. A mão dela jogava uma bolinha de borracha pelo jardim esculpido e os pés tomavam todo o cuidado para desviar as lajotas de concreto que faziam um caminho do portão da frente até a varanda. De lá, o pai de Ana, conhecido na cidade como Dr. Genari, por Ana como papai e pela esposa como amor, balançava na rede devagar feito a vida no interior; Sra. Genari, ou mamãe, ou amor, havia dito a ele que mantivesse os dois olhos na menina, trabalho que fazia questão de cumprir porcamente enquanto virava as páginas do dicionário russo que tinha em mãos e se surpreendia com a imbecilidade de não ter prestado a atenção atenção em uma perninha travessa. Na rua de terra batida, uma terra que parecia se misturar com areia nas cidades, mas que no campo era negra e marrom como o chocolate meio amargo, uma ou outra pessoa passava de vez em quando e, na lentidão dos passos dizia um “alô!, como vai?!”, ou simplesmente levantava o chapéu ao ver a imagem do clínico geral deitado na rede. Ele retribuía e vez ou outra perguntava sobre algum parente que havia passado pelo seu consultório dias antes. Não costumava atender à domicílio, entretanto as pessoas costumavam se dirigir ou ao consultório, ou a própria casa dele, na qual mantinha quantidade considerável de equipamentos. Era uma casa modesta, que, apesar do recato humilde, era muito melhor do que as outras, se destacando pela imensa parabólica no jardim. Dessa varanda, Dr. Genari ignorava seu posto e, como soldado desertor, dava mais um gole no quente e ardente chimarrão.

No Jardim, surpresa com as coisas ao seu redor, Ana brincava. Suas risadas serviam de música de fundo para a leitura pesada  e maquinal que o pai fazia. A criança de cinco anos, correndo atrás da bola que acabara de arremessar, tropeça e cai no chão, ralando o joelho. Por um momento ela pensa em chorar, é visível na maneira como ela olha para o pai, interrogativa. Sem reação, os olhos muito suavemente se comprimem, o lábio inferior começa a se projetar para frente, o queixo se enruga e as linhas nasais se dilatam. Era evidente, a criança iria chorar. Entretanto, ao olhar para o próprio joelho, lentamente todos esses sinais começam a desaparecer. O primeiro deles são os lábios, voltando à posição normal. De segundo em segundo, as sobrancelhas arqueadas para baixo, vão voltando à mais natural posição e sobem em surpresa. Os olhos se abrem, os ombros deixam se esvair de toda a tensão anterior. Ana olha para o próprio joelho sangrando. O olhar de desespero se transformou em um olhar curioso. Ela observa a própria articulação sem nem imaginar a complexidade por trás de cada movimento, por trás de cada plaqueta rompida para que a cadeia da coagulação tenha um início. Com seus finos dedos infantis, ela passa a mão no sangue que jorra do joelho e o traz até a boca. Ela fica impressionada com o gosto salgado do sangue, e isso se evidencia com o olhar contemplativo que ela lança ao infinito. E se torna mais evidente quando a percebemos voltando o dedo à ferida para experimentar mais sangue. A salubridade da chaga é intrigante, uma leveza no sabor…

Depois de saborear uma, duas, três vezes, ao final de seu experimento científico fez a incrível conclusão: “Como é salgadinho!”. Com toda certeza esse seria um dos assuntos à mesa de jantar.

Como toda criança intrigada demais com as possibilidades e novidades ao seu redor, Ana logo desinteressou-se pela ferida. Só voltou a dar bola para ela quando viu a casquinha e a coceira que logo surgiria dela. Mas novamente, tal curiosidade durou somente alguns minutos, pois correr e simular a vida adulta de caçadora que teria pela frente era uma atividade muito mais interessante dentro do próprio instinto humano que se apresentava, primaveril.

Eis que ela se vê contemplada por uma ideia. Está parada no jardim, olhando para o alto da copa da árvore. As folhas do cajueiro deixam um ou outro raio de sol transpassar, e isso dá um tom áureo, sagrado àquela obra de anos e anos de evolução e crescimento lento. O grosso corpo de árvore, a casca infestada de nervuras salientes são o convite que faltava. Uma centelha se acendeu e a árvore de um momento para o outro se tornou objeto de maior importância.

Decidiu desbravar a subida.

O começo foi difícil. Ter o corpo pequeno era um fator determinante para o ato de pôr o pé diretamente na dobra central dos troncos em ramo. Mas uma poda de muitos anos, já enegrecida, era o suporte necessário para que a subida se desse com facilidade. Pôs um pé aqui, outro ali em uma saliência e, quando deu-se por si mesma, estava na dobra central. De lá, três braços dividiam a espessura da árvore de forma aparentemente igualitária, cada um em uma direção, entretanto não perfeitamente espaçados, pois a diferença entre dois era de mais ou menos cento e oitenta graus, o que deu a Ana a oportunidade de subir.

Do centro do cajueiro, ela olhava para cima, calculando em quais dobras se segurar com as mãos e em quais outras se segurar com os pés. A tática, porém, não foi de escalada, mas de pressão. Essa pequena mente de cinco anos, deslumbrada com o mundo ao seu redor teve uma ideia brilhante: utilizar o atrito a seu favor. Mesmo que não pensasse tecnicamente assim, assim o fez. Os pés descalços forçavam um dos troncos de um lado e as costas do outro. Com uma pitada de tempo e cortes na roupa e nas mãos, já havia subido arranhaceuticos centímetros. O empecilho em seu caminho, entretanto, era o afastamento dos troncos. Conforme iam crescendo, iam também se afastando. A ironia desse paralelismo às avessas não era nada reconfortante.

Com seu instinto infantil, com sua mente humana, pensou em uma maneira de escapar. Viu, acima dos olhos outra bifurcação no crescimento da árvore. A utilizou a seu favor, agarrando-a com os braços. Dessa estratégia, tomou posição com os pés e se impulsionou para cima, até que o local onde antes estavam suas mãos servissem de apoio aos pés. De lá de cima, sentia-se no alto do mastro de uma caravela. Com uma mão segurando o próprio peso e a outra sobre os olhos, tapando o sol ofuscado pelas sombras das folhas, Ana se sentia um navegante procurando por um pedaço de terra na imensidão de um oceano inédito. Evitava olhar para baixo com medo da altura. Entretanto, isso não a impediu de subir mais e mais. Quanto mais subia, mais o universo se transfigurava. O que era antes um ensolarado jardim tronou-se uma densa floresta de folhas de um lado ao outro, uma mata tropical. Um pé vai aqui, outro ali. Não há outro caminho a não ser para cima. Fazendo força com os braços, esquecendo-se dos rasgos no próprio vestido, ela finalmente chega ao topo. Sua cabeça sai pelo cume e observa o telhado da casa com sorriso embasbacado. Ao olhar para o lado, vê o sol descendo por alguns minutos e depois de sentir uma dor no fundo dos olhos, aceita dele a sugestão e começa a descida.

Espantosamente, descer é mais difícil do que subir. Quando se desce, vê-se a frente o frio, gelado e fúnebre chão. A promessa que lhe faz da proximidade, da dor, é muito mais intensa e atormentadora do que a glória edificante da escalada. Mas Ana não se deixa abater por tal premissa e, com cuidado, desce. Um obstáculo. Teria de pular de um galho ao outro para chegar aonde queria. Sem medo, o fez, apesar de sentir o bruto balançar do tronco. Pensou por um instante que iria cair, tamanha foi a tremedeira do lugar. As folhas gritavam de horror ao balançar terremótico. Algumas não aguentaram a pressão e cometeram suicídio.

Passo à passo Ana foi descendo do cajueiro até fazer seu caminho de volta à dobra central. De lá, o pulo foi curto até o chão. A felicidade não podia ser contida. Ela cantarolava uma música que ouvira na televisão e dançava em um ritmo infantil, com braços soltos e vitoriosos.

Ela ia correndo até a rede contar ao pai sobre a mais nova aventura quando foi surpreendida pela imagem dele mesmo agachado no jardim. O sorriso que mantinha ao rosto desapareceu completamente. Algo estava errado. Papai deveria estar na rede, balançando-se e lendo qualquer coisa chata. Ao invés disso estava agachado sobre algo, olhando enquanto passava a mão na cabeça.

Cautelosa, com o mesmo cuidado com o qual subiu na árvore, Ana foi se aproximando. Com a lentidão dos passos, pôde ver pelo ombro do pai algo caído ao chão. Era algo marrom, seco e gosmento ao mesmo tempo.

– Pai? – ela perguntou, tão baixo quanto o sol.

Ele se virou e por detrás dos óculos, estendeu o braço em sua direção. Com o braço todo envolto à ela, a puxou para perto de si, para que visse o que ele via. Ao ver o que viu, ela começou a chorar. Mais do que choraria quando se calou, curiosa com o sangue. E com o sangue se calou também. Mamãe, Sra. Genari, apareceu na porta. O pai somente a olhou como quem diz que resolverá o assunto.

Com seu grosso e longo dedo, o médico virou o ninho de passarinhos para cima. Era possível enxergar perfeitamente o estado desenvolvido daqueles ovos antes de se quebrarem. Era como ver um bebê morto. Como ver uma promessa quebrada antes mesmo de ser feita.

Ele mostrou seu grande dedo para ela, aquele indicador de unhas curtas, e o levou até aquela mistura de sangue e casca que jorrou dos ovos quebrados. Molhou a ponta do dedo e depois o levou a boca.

– Como é salgadinho! – constatou.

Ana manteve-se em silêncio. Estava sentindo-se culpada pela morte daqueles pássaros. Papai pegou um dedinho dela e levou até aquela mistura gosmenta  esparramada entre os cadáveres. Melou o dedinho dela ali, e devagar levou até a boca dela. Seria possível? Como ele sabia? Ela pensava que ele estava lendo um livro e que não prestava atenção nela dali, da varanda. Entretanto ele o fez! De maneira estranha ele o fez! Foi nesse dia que Ana descobriu que bons pais estão cientes de muitas coisas, de muito mais do que imaginamos.

Ela pôs a gosma na boca e… era impressionante! Era mesmo salgadinho! Aquele animal, ou melhor, aquela promessa de animal, por dentro era tão humano quanto os homens! O sangue do ser era salgado como o nosso! O sangue do passarinho era tão salgadinho!

Era lindo!

– Esses dois aqui, se não estou enganado, são filhotes de sabiá. – Prevendo a piada que ela ouvira na escola e que repetia pela casa todo santo dia, ele completou – Sabia que o sabiá sabia assobiar?!

Ela riu. Choro transformou-se em riso e riso transformou-se em curiosidade.

– Por quê, papai? Por que é salgadinho também? – perguntou, limpando o nariz, com um enorme sorriso no rosto.

– Porque são vertebrados, minha querida! – Ele percebeu o rosto de confusão da menina. – Você não sabe o que são vertebrados, né?

Ela fez que não com a cabeça. E riu. – Que é um verterbado?

– Um vertebrado – corrigiu – bem… seria mais fácil se eu te mostrasse. Olhe aqui, para os filhotinhos de sabiá que tragicamente morreram. Eles morreram por um acaso do universo. Coisas assim acontecem. Mas nós, os curiosos, devemos olhar para essas coisas e tirar algo disso, mesmo que nós sejamos os culpados… Do contrário tudo isso seria só mais um desperdício. Está vendo – disse levantando a asinha em formação, mostrando através da pele em desenvolvimento e transparente os ossos brancos – esses aqui são os ossos. Esses contornos mais grossos sobre a pele. Vê? – ela respondeu positivamente. – Os ossos são as estruturas mais importantes dos vertebrados. Eles servem pra sustentação. Sabe quem mais tem ossos? – ela fez uma negativa. – Eu. – e sorriu. – Pega aqui no meu dedo, vai apertando ele, devagar. – ela foi apertando – devagar! – ele gritou. – assim você me machuca. – os dois riam. – Está sentindo? É o osso.

– Eu tenho osso também?! – gracejou.

– Mas é claro! Por isso mesmo é que seu sangue também é salgadinho!… O seu sangue, e o dele também, é produzido nos ossos, por assim dizer… – Ela ficou espantada! Não entendia como uma coisa poderia acontecer, e como estariam relacionadas. – Mas pra te explicar como isso funciona, tenho um pré-requisito. Você sabe o que é uma célula? – ela respondeu negativamente com a cabeça. – Quer saber o que é uma célula?

– Sim! – ela gritou.

– Ótimo! É algo um pouquinho mais complicado. Mas antes, vamos ter de limpar essa sujeira. Vá lá dentro e pegue um saco pro papai.

E correndo, entusiasmada com o irônico paralelo às avessas de vida e da morte, enquanto a noite finalmente caía, com a oportunidade de saber como as coisas acontecem, de ter seu lado infantil suprido por explicações que não necessitaria fazer, pois que já foram descobertas, suas pequenas pernas corriam em direção à dispensa à procura de uma sacola. Não. A procura de uma oportunidade: a descobrir dentro de si mesma um universo de posibilidades.

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